Lei 10.639: tema de redação do Enem reforça urgência da educação antirracista
Gabriel Jabur / Agência Brasília

Inovações em Educação

Tema de redação do Enem sobre herança africana reforça urgência da educação antirracista

Lei 10.639/03, que obriga ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas, ainda não é aplicada em 71% das cidades

por Ana Luísa D'Maschio / Ruam Oliveira ilustração relógio 4 de novembro de 2024

“Desafios para a valorização da herança africana no Brasil.” Quais seriam seus argumentos para este tema da redação do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) de 2024? Os 4,32 milhões de estudantes inscritos na avaliação, que no domingo (3) contou com as provas de linguagens e ciências humanas, tiveram de desenvolver um texto de até 30 linhas sobre o assunto. 

Especialistas ouvidos pelo Porvir consideram que, ao longo dos últimos anos, o Enem tem abordado temáticas de grande relevância para as novas gerações, que necessitam dessa ampliação de repertório. 

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“A escolha do tema acaba se tornando um impulsionador de determinados assuntos para o debate público e isso pode ter um impacto institucional. Aquelas organizações que não estavam tomando conta desse tema vão ter agora que dar algum tipo de resposta aos estudantes que esperavam se preparar, mas não receberam o apoio adequado”, afirma Paulo César Ramos, coordenador de pesquisa do Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial, o Núcleo Afro Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

Quando um assunto aparece na redação de um exame como o Enem, ele coloca em marcha a necessidade de que as escolas o incluam no currículo, principalmente no ensino médio, fase na qual a preparação para a prova se intensifica. 

O pesquisador do Afro Cebrap acredita que cada vez mais o Enem deve favorecer a incorporação de assuntos relacionados à Lei 10.639/03. Promulgada em 2003, a legislação tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos escolares, além de instituir o dia 20 de novembro como Dia da Consciência Negra.

Contudo, de acordo com um recente levantamento feito pelo Instituto Geledés da Mulher Negra em parceria com o Instituto Alana, 71% das secretarias municipais brasileiras realizam pouca ou nenhuma ação voltada para a efetivação da lei

“Os resultados da pesquisa demonstram que ainda vigoram resistências em compreender a história e cultura afro-brasileira e africana como um componente pedagógico para o pleno desenvolvimento das e dos estudantes, para o aperfeiçoamento e valorização das e dos docentes, para garantia do direito à dignidade de toda a comunidade escolar”, destacou a socióloga e coordenadora de educação e pesquisa do Geledés, Suelaine Carneiro, no lançamento do estudo. 

Neste sentido, Paulo César também ressalta a lacuna em relação ao que se conhece da história da África em comparação com outros continentes como a Europa, por exemplo. 

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Temática debatida e celebrada

Para quem atua com a educação antirracista na escola, a proposta de redação do Enem e outras questões ligadas à temática racial presentes na prova foram bastante celebradas. 

Vencedora da primeira edição do Prêmio Professor Porvir na categoria educação antirracista, a professora de português Cleide Magesk, do CIEP (Centro Integrado de Educação Pública) Filinto Müller Brasil-China, em Duque de Caxias (RJ), recebeu uma enxurrada de mensagens de seus alunos que fizeram a prova do Enem, agradecendo por ter apresentado o tema em aula.

Com o projeto “Trançando histórias”, vencedor aqui no Porvir e que acaba de conceder a Cleide o título de “Professora do Ano” pelo Prêmio Toda Matéria, a professora realiza um trabalho de valorização da identidade negra, passando por uma ressignificação dos trançados no cabelos. A iniciativa virou documentário e podcast

“Fiquei muito emocionada, de verdade, por causa dos meus alunos. Nossa escola trabalha, de fato, a Lei 10.639/03 e o ‘Trançando histórias’ foi mote para esse processo acontecer. Meus alunos estão radiantes. Citaram o projeto na redação, e isso não tem preço”, conta a educadora.

A despeito da escolha acertada do tema da redação, Cleide vê com apreensão o fato de muitos estudantes estarem alheios ao assunto por não terem trabalhado a temática em aula, ainda que exista uma lei que a torna obrigatória.

“Espero que o tema venha despertar todos aqueles que ainda negam a importância e a relevância de levar para as salas de aula discussões como heranças africanas, ancestralidade e identidade. Entendo que muitos colegas e gestores não têm formação, mas há também o descaso em querer fazer. Repetir velhos conceitos, hoje, não faz mais sentido”, destaca Cleide. 

Conexão com o currículo

Professor titular do curso de jornalismo da USP (Universidade de São Paulo) e militante da Rede Quilombação, Dennis de Oliveira lembra que as heranças africanas dialogam diretamente com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, documento orientador publicado em 2004, que atua como mecanismo de efetivação da Lei 10.639/03. 

Para Dennis, não só a redação, como outras questões do exame que abordaram diversidade, como a análise social da música “Capítulo 4, Versículo 3”, dos Racionais MCs, o impacto da novela “Escrava Isaura” na Rússia ou ainda a influência do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), foram elementos positivos para o Enem deste ano.

“Quando o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) elabora o Enem dessa forma e traz esse assunto como tema de redação, está justamente cobrando dos alunos os conhecimentos e a formação de acordo com essas diretrizes”, diz o docente. 

O assunto também instiga quem está para ingressar na universidade a refletir sobre a diversidade do país, afirma o educador. “Isso é muito importante porque a Lei 10.639/03 – assim como a 11.645/08, que trata da temática indígena – , alteram a Lei de Diretrizes e Bases Educação Nacional, documento que rege o ensino brasileiro.”

Os desafios são muitos na inserção das questões raciais nas aulas, principalmente devido ao fato de escolas ainda serem resistentes ao tema, aponta Dennis. “Optar por isso [falar do tema] no Enem também mostra uma resistência às ações conservadoras que nós observamos no campo da educação.”

📣 Palavra da comunidade antirracista do Porvir*

Educadores antirracistas de norte a sul do Brasil comemoraram o tema da redação do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) de 2024. Na internet, isso se refletiu no que chamo de “Ciberquilombismo”, essa rede criada para divulgação, acolhimento e memória de saberes negros. Todos estavam celebrando!

A razão? O povo negro, quando sequestrado da África, construiu o nosso país. Contudo, uma política de invisibilização, negação e soterramento dessa construção histórica foi implementada para aniquilar nossa mente e nos dizer que não somos capazes, algo repassado por gerações. Neste domingo, 3 de novembro, o assunto ganhou redação e visibilidade nacionais, possibilitando que mais de 4 milhões de estudantes pudessem refletir e dissertar a respeito. 

Quais são esses desafios? O primeiro é cumprir a Lei 10.639/03, instituída após anos de luta do movimento negro. Desde que pisou no Brasil, o movimento valoriza a educação como ferramenta capaz de romper as condições impostas aos povos negros durante a escravização e no pós-abolição. 
Essa legislação exige que os fatos sejam apresentados como realmente foram, e também busca ressaltar a contribuição efetiva e fundamental da população negra na formação brasileira. Além disso, deve-se fortalecer a resolução que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais das Relações Étnico-Raciais, relatada pela professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva. Esse movimento, porém, ainda avança lentamente nas escolas. 

É preciso transmitir aos mais jovens um conhecimento que eu e muitos de nós não tivemos na escola, reforçando a contribuição da cultura negra, das personalidades negras e das práticas negras dentro da sala de aula. 

Também é urgente valorizar os locais onde nossas práticas e novas memórias estão vivas. São os chamados Novos Quilombos, como definiu Beatriz Nascimento: uma escola de samba, uma roda de capoeira, o terreiro do Candomblé, os clubes sociais negros… Esses são os locais de pertencimento da comunidade negra.

Como isso pode se propagar? Por meio do Ciberquilombismo. Uma vez que a escola não assume esse papel e ainda não é o local de produção e visibilização desses saberes, os outros espaços são fundamentais para que possamos aprender e romper com os obstáculos que dificultam a preservação dessa herança.

Há ainda muitos temas enterrados pela política de branqueamento que precisam ser revelados pela educação, pela mídia e pelas legislações anteriores a 2001, quando ainda não se reconhecia que o Brasil é um país racista.

Portanto, eu acredito que a omissão da escola frente ao que o movimento negro há tempos aponta como necessário é um dos principais desafios a serem enfrentados.
*Por Neuza Jaqueline Franco, educadora antirracista, professora referência do EEABI (Espaço Educativo Afro-Brasileiro e Indígena) Glória Maria, da EMEF Afonso Guerreiro Lima, em Porto Alegre (RS), e integrante do grupo de “Educação Antirracista” do Porvir no WhatsApp

Pontos a se considerar

A opinião é partilhada pelo professor Diogo Jordão, do Colégio Estadual Nelson Pereira Rebel, em Campos dos Goytacazes (RJ). Vencedor do Prêmio Professor Porvir na categoria ensino médio, ele faz parte do grupo de educação antirracista do Porvir no WhatsApp, que ficou bastante movimentado assim que o tema da prova foi revelado. 

“Sabemos que, apesar da existência da lei que obriga o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira, muitas escolas não trabalham essa temática. Em alguns casos, o assunto é abordado apenas em datas específicas, como no dia 20 de novembro. Além disso, é comum uma abordagem muito superficial e, às vezes folclórica, da questão racial no Brasil, sem haver um aprofundamento sobre as causas estruturais do racismo e o seu combate”, afirma.

Com esse cenário, o educador também receia que os alunos tenham discursado em suas redações apenas pelo aspecto do preconceito racial, sem ingressar em um debate mais qualificado a respeito das heranças africanas e o racismo, temáticas que ele abordou com suas turmas do ensino médio ao longo de 2024.

“Além de buscar cumprir a Lei 10.639/03, foi uma tentativa de ampliar a formação dos estudantes prejudicados com a exclusão de algumas disciplinas de humanas em determinadas séries do ensino médio. Para o cumprimento da legislação, considero ser necessário ampliar a formação dos docentes e oferecer recursos didáticos para o trabalho. Infelizmente, ainda há professores que desconhecem a legislação e outros não se sentem aptos a abordar o tema”, aponta Diogo.

Sobre a redação no Enem

A redação vale mil pontos e abrange cinco competências (200 pontos para cada): 1) domínio da escrita formal da língua portuguesa; 2) compreensão do tema e aplicação de conhecimento sem fugir da proposta; 3) organização das ideias; 4) coesão do texto; 5) proposta de intervenção.

Por outro lado, há critérios que conferem nota zero, como fuga ao tema, extensão total de até sete linhas, trecho deliberadamente desconectado do tema proposto, não obediência à estrutura dissertativo-argumentativa e desrespeito à seriedade do exame.


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educação antirracista, enem, ensino médio

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