Cinema e suas diferentes formas de ensinar
Crítico de cinema e pesquisador, Sérgio Rizzo fala sobre o uso do audiovisual com gamificação e aprendizado baseado em projeto
por Vinícius Bopprê 26 de dezembro de 2013
“Como eu devo muito do que eu sou ao fato de ter me tornado, no começo da adolescência, um leitor e um espectador voraz, preciso acreditar que isso pode ser importante para todo mundo, não só para mim”. A frase é do jornalista, pesquisador e crítico de cinema Sérgio Rizzo que, em 2011, concluiu sua tese de doutorado em que defendia a criação de uma especialização para que professores do ensino fundamental pudessem trabalhar o audiovisual nas escolas. Para ele, esse tipo de formação é fundamental já que o uso do cinema em sala de aula muitas vezes é ingênuo, principalmente quando o assunto é história. O professor não deve tomar para si a tarefa de fazer interpretações sobre o filme, diz Rizzo, mas sim saber conduzir a discussão e permitir que todos os alunos estejam à vontade para fazer suas próprias leituras. Ele deve agir como um mediador, levando em consideração a forma como os próprios alunos enxergam a realidade ao redor.
“Tem muito professor de história sem essa sutileza. Ele gosta de um filme porque é correto, porque na pré-história era assim. Mas não dá para saber se era porque nem eu e nem ele estávamos lá. O professor precisa ser inteligente para não cair nessa lógica e estreitar as possibilidades que o uso do audiovisual proporciona”, diz.
Possibilidades estas que vão além da criação de um Cine-Clube – espaço dedicado para a exibição e discussão de um filme. O cinema pode ser usado em união com diversas tendências do aprendizado, como a gamificação e o aprendizado baseado em projetos. De acordo com Rizzo, pode-se gamificar a produção de um vídeo, por meio da criação uma competição em que os alunos devem buscar, num prazo determinado, personagens do seu bairro para contar uma história. Ou ainda, pensar projetos transversais no currículo que vão misturando turmas de várias idades e disciplinas para a conclusão de um mesmo documentário.
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O pesquisador afirma que com essas atividades os alunos desenvolvem habilidades como o trabalho em grupo, a criatividade e até o empreendedorismo, conhecidas como competências para o século 21. “Essas habilidades vão ser relevantes para qualquer coisa que esse estudante vá fazer na vida”, diz Rizzo, que vê no cinema uma maneira de driblar um mal da modernidade: a falta de concentração. “Nesse tempo de internet, rede social, smartphone, ninguém mais consegue se concentrar em nada e todo mundo precisa de concentração: o engenheiro, o advogado, o jornalista, a moça que tira o café, o cozinheiro. O cinema pode ajudar”, afirma. Confira abaixo essas e outras ideias do especialista.
Porvir – Por que o cinema?
Sérgio Rizzo – Como eu devo muito do que eu sou ao fato de ter me tornado, num momento crucial da minha vida, começo da adolescência, um leitor e um espectador voraz, preciso acreditar que o cinema pode ser importante para todo mundo, não só para mim. As pessoas deveriam ter, ao menos, a oportunidade de experimentar. Ainda que não mude sua vida, que você não goste, mas aos menos tenha tido a oportunidade de conhecer.
Porvir – Que habilidades você acha que os alunos podem desenvolver por meio do audiovisual?
Sérgio Rizzo – O audiovisual traz informações sobre o mundo. Eu, você e todos nós sabemos coisas sobre o mundo não por experiência direta, mas porque as conseguimos por meio da televisão, do cinema. Quando você começa a possibilitar que os repertórios se organizem minimamente, você também está possibilitando que o volume de informações seja organizado. Boa parte do conhecimento que tenho de geografia, por exemplo, consegui por causa do futebol, por saber onde ficam as cidades de tais times. Estamos falando portanto de apresentações do mundo, de temas contemporâneos, que são conhecimentos mensuráveis. Para uma criança ou jovem que hoje está na escola, o cinema apresenta grandes temas do mundo em que ele vai viver.
E se falamos de realização, ai temos ainda um componente fortíssimo que é o do trabalho colaborativo e, se você preferir, do empreendedorismo. Essas habilidades vão ser relevantes para qualquer coisa que o estudante vá fazer na vida. Ele vai, por exemplo, aprender a trabalhar em grupo, aprender a conhecer os limites e desafios do desempenho de uma atividade. Além disso, o audiovisual, pela necessidade de alcançar um resultado diferente do da feira de ciências, do seminário, é mais envolvente. Portanto, o aprendizado do trabalho em equipe é mais intenso por conta da própria natureza do cinema.
A produção também envolve aspectos culturais, da cidade, do bairro, da comunidade. Imagine, por exemplo, você sugerir a pauta na sala de aula: vamos achar 20 artistas do bairro e fazer um documentário para a próxima semana. Vai ajudar no vestibular? Vai. Mas estamos falando aqui de um outro ganho, de um outro tipo de benefício, que é pra vida.
Porvir – Como professor pode desenvolver o audiovisual na escola?
Sérgio Rizzo – Temos, por exemplo, a ideia de gamificação, de reunir uma equipe de jovens, numa sexta-feira, e dar a missão para que façam um vídeo sobre um assunto X até o domingo, quando todos os filmes serão exibidos juntos. Essa atividade pode ser independente de outras, mas pode também estar conectada com vários eventos do calendário escolar, com projetos inter e multidisciplinares, com uma ou várias turmas.
Podemos também pensar na criação de um Cine-Clube, que é um negócio simplérrimo. No site do Ministério da Cultura, temos apostilas que são mais do que suficientes para orientar um professor que esteja disposto a arregaçar as mangas e montar um projeto. Nele, o educador deve exibir e discutir os filmes. Precisamos, necessariamente, das duas coisas para caracterizar um Cine-Clube, não é só passar o filme e ir embora.
Há também a atividade de sair da escola e ir até uma sala de cinema, sentar e assistir um filme, no escuro, com outras pessoas, por uma hora e meia. Uma atividade como essa vai ser importante porque, nesse tempo de internet, rede social, smartphone, ninguém mais consegue se concentrar em nada e todo mundo precisa de concentração: o engenheiro, o advogado, o jornalista, a moça que tira o café, o cozinheiro.
Sem querer, pensando no Cine-Clube e na gamificação, nós tratamos de braços bem distintos do audiovisual. Primeiro porque o cine-clube envolve recepção crítica e segundo porque quando colocamos os pés na ideia da produção, já estamos no plano da realização, que é o domínio da linguagem audiovisual como um tipo de expressão do nosso tempo. Você acreditar que alguém em pleno século 21 possa ser um analfabeto em termos audiovisuais, ou seja, não consiga se expressar em termos audiovisuais? Me parece inconcebível.
Porvir – Mas por onde começar?
Sérgio Rizzo – Quer fazer alguma coisa no campo da reflexão ou da realização? Essa é uma primeira pergunta, porque eu diria que talvez para um grupo de professores sem muita infraestrutura, sem ninguém com um pouco mais de qualificação, a reflexão seja melhor que a realização porque o projeto de realização pode naufragar e esse naufrágio pode criar um trauma que impeça que essa escola faça outra coisa.
Porvir – E como a reflexão impulsiona a prática?
Sérgio Rizzo – Mesmo quando você está fazendo uma atividade puramente reflexiva como a do Cine-Clube, colocando minhoca na cabeça de todo mundo, acredito que deixamos um aprendizado. Quando esse aluno empunhar o celular para fazer o vídeo da festa de aniversário, ele vai, pelo menos, pensar que precisa se preocupar com algumas coisas para deixar aquela história mais bonita, como o enquadramento, a edição, saber que pode colocar no computador e misturar com outras cenas, outras músicas.
E na sala de aula, como o professor pode usar a linguagem audiovisual para trabalhar o conteúdo?
Sérgio Rizzo – Um bom exemplo de alguém que usa a criatividade para ensinar com audiovisual é o professor Wilson Falcão, que trabalha em uma escola da rede pública do ensino médio do Recife e tem um canal do YouTube que se chama Super Professor Wilson. Ele faz tudo de maneira colaborativa, com alunos de turmas diferentes, para discutir, por exemplo, a morte do presidente Kennedy.
Mas se o assunto for história, como é o caso do professor Wilson, acho que tem um cuidado a tomar – e professores de história que conheço pensam a mesma coisa. O uso do filme histórico dentro de sala de aula não pode ser ingênuo, precisa ser inteligente. Digo porque muita gente me conta que tem professor de história que diz: “Olhem esse filme, imaginem que as coisas eram assim nessa época”. Espera aí, o filme de cinema é uma leitura de eventos e personagens, é isso que você precisa trabalhar, não é você olhar para o Maria Antonieta (2006), da Sofia Coppola, e criticar porque ela está usando um tênis All Star e não existia All Star no século 18. Não, claro que não, então o que o sapato está fazendo lá? Que tal pensar sobre ele em vez de pensar que ele está errado? Será que a diretora quis fazer algum tipo de leitura? Porque todo mundo faz leitura, assim como o historiador, como todos nós.
Então, tem muito professor de história sem a sutileza pra captar esse negócio, que vai gostar de um filme tal porque diz que é correto, porque a pré-história era exatamente assim. Não dá para saber se era porque nem eu, nem ele estávamos lá. O professor precisa ser inteligente para não cair nessas ingenuidades senão, ele vai estreitar, em vez de ampliar, as possibilidades que o uso do audiovisual proporciona.
Porvir – Como o professor pode buscar formação para aplicar o audiovisual?
Sérgio Rizzo – O que poderia acontecer é a criação de um ambiente virtual de aprendizagem, em que seria montado um curso de EAD para ser feito por qualquer interessado, no seu ritmo, como e quando pudesse. Tem muito material disponível na internet, então, esse espaço seria também um meio de organizar informações que estão muito dispersas.
O autodidatismo, nesta área, também funciona. O professor interessado no assunto pode buscar uma bibliografia básica, cuidar por algum tempo da formação de seu repertório e se impor algumas atividades de reflexão – como escrever um pouco sobre os filmes que assistiu, programar um debate na escola, acreditando na importância de ativar esses conhecimentos que ele adquiriu de forma autodidata para outros professores, alunos ou a comunidade escolar de maneira geral.
Se ele fizer isso, acho que já temos meio caminho andado e não seria muito diferente do que fez a maioria dos professores que está atuando na área de maneira notável. Eles são autodidatas, a maioria deles não passou por nenhuma formação, eles arregaçaram as mangas e disseram: vamos lá!