Quando aluno escolhe seu caminho no ensino médio, a rotina da escola também muda
O novo desenho curricular traz mudanças significativas que influenciam diretamente na forma como se organizam as rotinas nas escolas
por Ruam Oliveira 17 de novembro de 2021
As coisas vão mudar. A partir de 2022 as escolas terão como obrigação trabalhar com uma nova proposta de ensino médio. Já falamos sobre ela aqui outras vezes no Porvir, mas, recapitulando, trata-se de um novo modelo, que busca colocar o estudante em uma posição de maior protagonismo e com conhecimentos mais integrados.
Para isso, foram criadas estratégias que possibilitam que ele trabalhe além dos conteúdos das áreas do conhecimento, alguns aspectos pessoais que jogam luz sobre a trajetória que quer percorrer no seu futuro.
É uma grande mudança. E planejar tudo isso não é uma das tarefas mais fáceis a serem feitas. O Novo Ensino Médio prevê uma carga horária de 1.800 horas nos três anos para lidar com os conteúdos de todas as áreas do conhecimento – como linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas– e outras 1.200h para os itinerários formativos –, onde estão os projetos de vida e as disciplinas eletivas. Ou seja, 60% para o currículo comum e 40% para a parte mais flexível.
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Tudo isso impacta na rotina. O Colégio Santa Maria, em São Paulo, vive uma mudança de rotina desde 2020, quando iniciou seu processo de alteração do Ensino Médio, começando com a primeira série. O processo final para a conclusão dessa mudança deve ocorrer em 2022 com a inserção do terceiro ano nos novos formatos de ensino.
Silvio Freire, diretor de ensino médio da escola, afirma que um dos impactos na rotina, por exemplo, é que a semana de provas – antes parte do calendário escolar – agora não é mais possível. Isso porque muitos componentes curriculares são trabalhados em conjunto, abordando diferentes áreas do conhecimento e não mais de maneira específica. A escola chega a oferecer cerca de vinte disciplinas eletivas, das quais cada estudante pode selecionar até três por período.
Essa possibilidade de escolha é outro ponto que altera a rotina do gestor e de quem está encarregado de pensar o planejamento letivo. Silvio aponta que, ao mesmo tempo em que o Novo Ensino Médio dá maior poder de escolha para os estudantes, quem planeja a grade precisa esperar que os alunos façam essas escolhas. Para fechar uma turma de clube de vôlei, por exemplo, é preciso ter quórum mínimo, que a coordenação só saberá ao certo quando os estudantes optarem ou não por ela.
Os impactos podem aparecer além do conteúdo curricular. André Sampaio, especialista pedagógico da Árvore, aponta que o uso de espaços físicos também pode ser afetado pela nova modalidade de ensino. Isso devido principalmente às possibilidades de flexibilização das aulas.
Antes as turmas costumavam ser mais rígidas, com salas definidas sempre no mesmo lugar, horários também fixos, e isso vai se alterando à medida em que há a possibilidade dos itinerários, da atuação híbrida e uma mudança na prática mesmo. “Pode ser que essa eletiva não aconteça no interior de uma sala de aula, porque acho que a existência de itinerários pode provocar a ocupação de muitos espaços de aprendizagem, sejam eles físicos, dentro da própria escola, sejam eles virtuais”, afirmou.
Ainda nessa reorganização das turmas, um diferente impacto está na possibilidade de que alunos de disciplinas eletivas estejam em diferentes anos escolares. Esse rearranjo proporciona uma interação entre estudantes de diferentes períodos, o que pode ser significativo na maneira como as turmas são formadas.
E essa mudança impacta não apenas na rotina dos estudantes, como também na dos professores – e principalmente na maneira como se organizam e planejam as aulas. André ressalta que o novo modelo requer uma interação entre diferentes componentes curriculares e, por consequência, os docentes devem ampliar o diálogo estabelecido entre si.
Um dos argumentos para a implementação de um novo ensino médio aponta que da maneira como antes ele era formulado estava pouco – ou nada – conectado com a realidade das juventudes de hoje em dia. Ou seja, muitos não conseguiam fazer a ligação entre o conteúdo que aprendiam em sala de aula e suas vidas. Outro fator considerado determinante para a mudança é o alto índice de evasão nessa etapa do ensino, também vinculado à percepção de desconexão com os estudantes.
Por isso, o novo ensino médio foca bastante no desenvolvimento de habilidades e competências, em uma organização curricular feita por área do conhecimento. Essa reorganização impacta também docentes, que precisam repensar a lógica de ensino, contando muito mais com conhecimentos de outras áreas do que com uma hiperespecialização do próprio segmento.
Da experiência que tem no Santa Maria, Silvio aponta que isso também foi – e tem sido – bastante desafiador para os professores e professoras. “Os educadores, muitas vezes, tem uma fala mais inovadora, mas a prática real é bastante tradicional. Eles tiveram que mudar por conta desse novo modelo, e para todos foi muito difícil. Foi difícil incorporar essas novas metodologias, sair do centro da aula e passar a ser mediador do conhecimento, criar novos métodos de avaliação que não seja a prova dissertativa, por exemplo”, pontuou o diretor.
A previsão do governo é de que até 2024 todas as escolas estejam plenamente funcionando com o novo modelo de ensino. Por se tratar de uma mudança robusta, que envolve diferentes aspectos do currículo, Silvio destaca que é importante ter a presença, tanto do estudante, quanto do professor, em todo o processo de planejamento curricular. Ou seja, trazer o estudante para a centralidade desde o início, antes mesmo de iniciar qualquer implementação.
André Sampaio sugere que, para ajudar nessa transição, os docentes estejam atentos às metodologias ativas, à aprendizagem baseada em projetos e em como incentivar a colaboração entre os estudantes. “Os professores têm que começar a refletir também sobre práticas interdisciplinares. Sair do âmbito das finalidades da sua disciplina e começar a se conectar com outras disciplinas através do desenvolvimento de habilidades”, conta. O educador aponta que muitas práticas foram pensadas tendo o professor como fio condutor e figura central da aula, então o desafio que se apresenta é quebrar essa prática. A rotina dentro da sala de aula passará a ser mais centrada no que os estudantes, e menos no que os educadores dizem.
É um processo inverso ao que estava anteriormente estabelecido quando se pensa na prática docente, ressalta André. Antes, buscava-se uma hiper especialização, agora não mais. “É realmente uma mudança de mentalidade. A gente tem que parar de pensar no nível da especialidade e ter uma leitura mais ampla. E acho que para fazer esse movimento [depende] muito do diálogo entre os professores. Acho impossível que eu como professor de história, tenha uma leitura geográfica tão boa quanto o professor de geografia, mas se sento com ele para conversar e trocar uma ideia podemos ter mais unidade”, diz André.