‘A educação deste país tem uma dívida com o público da EJA’
Em entrevista exclusiva, Cláudia Borges, diretora de Políticas de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos do MEC, fala sobre a retomada da pauta da Educação de Jovens e Adultos e os planos para fortalecer a modalidade
por Ana Luísa D'Maschio / Marina Lopes 16 de junho de 2023
Parece contraditório que, no país de Paulo Freire (1921-1997), referência mundial na educação popular e na alfabetização de adultos, ainda existam 9,6 milhões de pessoas com 15 anos ou mais de idade que não sabem ler e escrever. Os dados da Pnad Educação, divulgados neste mês de junho pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), reforçam a urgência de fortalecer a EJA (Educação de Jovens e Adultos).
A modalidade, escanteada pelos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro, ficou ainda mais desamparada com a extinção da Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão), em 2019. Mas essa pasta acaba de voltar à ativa, bem como a Cnaeja (Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos), espaço de debate com os movimentos sociais e a comunidade em geral.
“A educação deste país tem uma dívida com o público da EJA”, afirma Cláudia Borges, diretora de Políticas de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos do MEC (Ministério da Educação). Em entrevista exclusiva ao Porvir, Claudia aponta os desafios da nova gestão e o compromisso de não negligenciar os direitos das populações que, historicamente, foram deixadas para trás. “Tenho ouvido muito da nossa secretária aqui na Secadi, a Zara Figueiredo, que cada pessoa que subiu a rampa com o presidente Lula está aqui, é uma representação nossa“.
Cláudia é doutora em educação pela Universidade de Brasília e possui uma longa trajetória como pesquisadora e militante social: durante anos, foi representante do Fórum Goiano de Educação de Jovens e Adultos. Em sua tese de mestrado pela Universidade Católica de Goiás, aboudou o processo de ensino e aprendizagem do trabalhador-aluno, público central da modalidade.
“A EJA é uma construção da desigualdade social no Brasil. Então, ter compromisso com o direito desse público, que vai desde a alfabetização até a possibilidade dele entrar na educação superior, é trazer Paulo Freire para a nossa luta”, defende.
Confira a íntegra da entrevista:
Porvir – O que representa o retorno da pauta da EJA ao Ministério da Educação?
Cláudia Borges – Compreendo que a retomada, não só da EJA, mas de toda a cadeia educacional, é uma aposta muito grande, uma aposta de que esse público será ouvido e, de alguma forma, atendido pelas políticas públicas. Existe, sobretudo, um compromisso com a modalidade. Tenho ouvido muito da nossa secretária aqui na Secadi, a Zara Figueiredo, que cada uma das pessoas que subiram a rampa junto com o presidente Lula está aqui, é uma representação nossa. Não podemos negligenciar nenhuma daquelas pessoas. Temos um compromisso.
Porvir – Uma das primeiras medidas da secretaria foi a retomada da Cnaeja (Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos). Como o trabalho está sendo pensado?
Cláudia Borges – Até 2016, eu participei do Fórum Nacional da EJA. Com o golpe que tirou a presidenta Dilma Rousseff (o impeachment aconteceu em agosto de 2016), a Cnaeja deixou de existir. Em 2019, tentaram fazer uma reunião, e as pessoas ficaram constrangidas. Afinal, era um governo, comandado por Jair Bolsonaro, que atacava o tempo todo os pobres e os trabalhadores, que são o público de EJA. Foi uma reunião tímida, que culminou, na semana seguinte, na destituição de todas as comissões. Estamos inaugurando um novo tempo nesse país, um tempo de diálogo. Não há como fazer qualquer política pública sem diálogo e, na EJA, historicamente, isso é um eixo central.
Porvir – A Cnaeja representa esse diálogo com a sociedade?
Cláudia Borges – Exatamente. A Cnaeja é o nosso espaço de diálogo com a sociedade civil, com os movimentos sociais, com as instituições de educação superior, com as pesquisas, com a organização dos secretários de educação, dos Conselhos Municipais de Educação e Sobretudo com os movimentos de educação popular e o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra). Vamos precisar muito desse diálogo e da defesa da modalidade, porque teremos de enfrentar algumas falas mais complexas no Conselho Nacional de Educação.
Porvir – A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e a relação com a EJA é uma delas, certo?
Cláudia Borges – Precisamos de uma discussão com toda a sociedade e com todos os movimentos que estão envolvidos para repensar essa resolução. Infelizmente, ela foi estabelecida sem diálogo. À época, nós, dos Fóruns de EJA, tivemos um tempo mínimo para fazer um documento e enviá-lo ao Conselho Nacional de Educação, com a nossa opinião, o nosso desagravo à proposta. Não tivemos escuta: foi uma resposta mínima, e a resolução passou. Desde que chegamos aqui, temos conversado com estados e municípios e muitos nos relatam a preocupação de fazer currículo com diretrizes curriculares próprias, com suas redes alinhadas à resolução. Há um time dos secretários de educação na Cnaeja. Vamos precisar muito de diálogo.
Porvir – Por que as orientações da BNCC não conversam com a realidade do público da EJA, na sua essência o jovem trabalhador?
Cláudia Borges – Durante a construção da BNCC, no governo Dilma, tivemos muitas discussões, várias audiências e três versões. Ao apagar das luzes, e com o golpe, a terceira versão da BNCC, que tinha problemas, foi aprovada a toque de caixa. É importante deixar claro que nunca fomos favoráveis em estar na BNCC, porque entendemos que o currículo da Educação de Jovens e Adultos é diverso. Temos diversidade de pessoas, diversidade territorial, temos EJA Quilombola, EJA do campo, EJA indígena. Como vamos pensar em uma Base Nacional Comum Curricular? E o currículo tem muito mais a dimensão interdisciplinar, que dialoga com a territorialidade, como a realidade.
Porvir – Como vocês têm pensado o currículo?
Cláudia Borges – Vamos retomar a discussão a partir das diretrizes do professor Carlos Roberto Jamil Cury, que fez um parecer maravilhoso, com mais de 300 audiências públicas. Isso foi nos anos 2000, mas ainda é muito presente para nós, bastante próximo da nossa realidade, que ainda pode ser atualizada. Essa é uma pauta sensível, porque vamos fazer um enfrentamento ao Conselho Nacional de Educação.
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Porvir – Na série de reportagens sobre EJA que fizemos em 2022, escrevemos sobre o menor investimento na EJA do século, tanto financeiro quanto na execução de programas. Quais são as políticas de acesso e de permanência que vocês consideram prioritárias?
Cláudia Borges – Estamos desenhando a política em três eixos, entendendo que são gerais e prioritários. Pensando um pouco nos números, temos em torno de 10 milhões de pessoas com 15 anos ou mais que não foram alfabetizadas, ou seja, cerca de 6,6% da população. Pensar em uma política de alfabetização é essencial. Estamos falando da meta 9 do PNE (Plano Nacional de Educação). Estamos traçando uma política que vai além da alfabetização das primeiras letras e deve ter um nome definido em breve – por ora é chamada pelo mais simpático, Alfabetiza Brasil EJA.
Porvir – E como o Alfabetiza Brasil EJA deve funcionar?
Cláudia Borges – A educação deste país tem uma dívida com o público da EJA. Queremos estimulá-lo a que não encerre os estudos, dê continuidade a eles. Nosso segundo eixo pretende elevar a escolaridade de jovens, adultos e idosos. Entre 2019 e 2022, foram 500 mil matrículas a menos. Se considerarmos a década entre 2012 e 2022, são em torno de 1,2 milhão de matrículas a menos. Temos uma demanda de 39 milhões de brasileiros que não terminaram o ensino fundamental; de 15 anos para mais, são 57 milhões que não possuem ensino médio. Aqui falamos da meta 8 do PNE. Precisamos de estímulo para que as redes continuem buscando esse público e, oxalá, a gente possa diminuir esse número de pessoas que não terminou a educação básica. É um direito previsto na Constituição Federal.
Porvir – Falamos da política nacional, de criar oportunidades de seguir estudando, elevando a escolaridade. Qual é o terceiro eixo que vocês estão desenvolvendo?
Cláudia Borges – Notamos que nossas metas estão ligadas ao Plano Nacional de Educação, como a 8 e a 9 que falei anteriormente. E, na meta 10, sobre a EJA integrada à educação profissional, temos baixa taxa de matrícula. Para o nosso público, é imprescindível trazer a discussão do mundo do trabalho. Ele se sente reconhecido e referenciado quando apresentamos um currículo com essa afinidade. Nossa perspectiva é aumentar as matrículas. A meta 10 fala sobre oferecer, no mínimo, 25% das matrículas de EJA nos ensinos fundamental e médio na forma integrada à educação profissional. Temos um dado gritante: chegamos a 2023 com 2,8% dessa meta alcançada, número bem aquém do esperado.
Porvir – Uma denúncia que apuramos foi o investimento sem precedentes na certificação da EJA do governo anterior, em detrimento do investimento na própria EJA. Como vocês avaliam esse contexto de certificação?
Cláudia Borges –Também julgo como dedicada essa questão. Vamos tratar muito dela. Na semana passada, conversei com uma pessoa do Ministério do Trabalho que trouxe a ideia de tentarmos algo em conjunto, o que será interessante. O Encceja (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos), para mim, é um dos grandes desafios. Hoje, ele não atende ao nosso público, mas sim a uma classe média mais alta, daqueles indivíduos que cansam de frequentar escolas particulares ou que não estudam o suficiente para poder passar e recorrem ao Encceja para obter a certificação. Acho que ele abre muito espaço para instituições privadas que anunciam certificação em três ou dois meses. Já fizemos uma conversa no Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). Precisamos também fazer um estudo sobre a prova. Temos bons especialistas que podem nos ajudar.
Porvir – Quando conversamos com diretores e gestores das escolas, com quem está pensando a EJA, uma das questões é que fazer a educação mais contextualizada, que dialoga com o território e atende as realidades desse sujeito de direito, é um formato mais caro. Qual é a estratégia para o financiamento?
Cláudia Borges – Esse é outro grande desafio. Temos percebido que os recursos do governo federal, durante esses seis últimos anos, foram bastante minimizados. Inclusive, temos recursos parados em conta que estamos tentando liberar, porque é importante que esse dinheiro seja gasto para justificar novos orçamentos para 2024. Neste ano, temos um orçamento curto, pequeno, porque o governo pegou terra arrasada em todos os sentidos, inclusive no campo orçamentário.
Porvir – Qual o papel do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica) nessa questão?
Cláudia Borges – Nós, da Secadi, estamos promovendo um debate sobre um novo Fundeb e um novo VAAR (Valor Aluno Ano por Resultados). O VAAR está ligado a um critério de avaliação e, por sermos uma modalidade sem avaliação, não estamos incluídos nele. Se ele tivesse o critério de aumento de matrícula em novas turmas, poderíamos estar presentes e ter recursos. Mas é uma discussão bastante tensa.
Porvir – Por quê?
Cláudia Borges: Sempre foi um debate difícil, ainda mais para nós da EJA. Para convencemos os secretários municipais de educação e o governo dos estados a ofertarem EJA, eles precisam saber que vai haver dinheiro para isso. Essa é uma das nossas reivindicações enquanto diretoria. Não tem sentido a gente continuar com 0,8 (aqui, Cláudia faz referência aos fatores de ponderação do valor anual por aluno, que considera estudantes matriculados para fins de distribuição dos recursos do Fundeb. Mais detalhes neste documento). O número de quase 80 milhões de pessoas com 15 anos ou mais que não concluíram a educação básica não diminuirá se não houver uma mudança no financiamento. Precisamos buscar outros formatos de recursos para assegurar a própria permanência desse público na escola, e isso não depende apenas do Fundeb, e sim de outros recursos, como a possibilidade de uma bolsa de permanência. Uma coisa é termos recursos próprios do governo federal para fomentar, e outra é dizer ao secretário de educação que se ele abrir novas turmas ele vai ter um adiantamento do Fundeb e o fator que sairá de 0,8 para 1,2, da educação profissional. Se chegarmos a isso, já caminharemos para algumas mudanças.
Porvir – A falta de material didático adequado à realidade do estudante da EJA também é uma queixa recorrente. O que vocês pretendem fazer a respeito?
Cláudia Borges – A questão da formação e da produção do material didático está bem casada. Sabemos que muitas redes fazem seus próprios recursos e que há bastante material apropriado para a EJA, mas também sabemos que há fotocópias de materiais destinados às crianças indo para jovens e adultos. Temos a perspectiva de criar um grupo para coordenar a discussão da confecção desse material. Fizemos uma reunião sobre o Plano Nacional do Livro Didático da EJA e ficou acertado que teremos nossa própria publicação. Vamos começar a elaboração de editais, porque precisaremos de avaliadores para pensar o material. É um processo longo.
Porvir – Poderia detalhá-lo?
Cláudia Borges – Para vocês terem ideia, estamos começando agora e só em 2025 esse livro chegará à escola. Também queremos que a literatura esteja presente em todas as escolas para os estudantes da EJA, desde a alfabetização, inclusive para os mais idosos, que representam um público maior. Queremos disponibilizar um kit de livros literários para que eles possam manusear e se sentirem instigados a ler posteriormente. Essa proposta já está incluída no plano do livro didático, que também prevê a produção literária. Estamos desenhando uma verba específica para a produção desse material.
Porvir – Voltando à formação de professores, são raros os cursos que consideram a EJA. Como resolver essa questão?
Cláudia Borges – Dentro da Cnaeja, isso já é uma pauta e queremos levantar essa discussão. Estamos com o Grupo de Trabalho de Educação de Jovens e Adultos, que tem todo um diálogo com as universidades e com os institutos federais de educação. Precisamos nos aproximar dos nossos dirigentes municipais e estaduais para que também se engajem nessa luta, a fim de que as universidades tenham o olhar para a EJA desde a formação inicial nos cursos de pedagogia – seria bom que isso ocorresse em todas as licenciaturas. Essa é uma pauta nossa, antiga, de que todas as licenciaturas tenham o mínimo de fundamento em Educação de Jovens e Adultos. Antes, mencionei a formação continuada, mas a gente precisa também garantir a formação inicial. Além disso, é importante que as extensões universitárias também considerem a EJA, com estágios sendo realizados nessa modalidade.
Porvir – É preciso uma articulação entre poderes?
Cláudia Borges – Conversei com o Renato Simões, Secretário Nacional de Participação Social, e ele disse que está fazendo uma discussão bastante compromissada com as universidades em relação às extensões, porque elas também vão também fazer um diálogo com educação popular. Isso é bastante esperançoso para nós. Acredito que a ideia de a educação popular acompanhar as políticas do governo tem um efeito concreto.
Porvir – A juvenilização da EJA é outro ponto bastante sensível. Os jovens trazem especificidades para essa modalidade. Pensar na educação de adolescentes é diferente de pensar na educação de adultos…
Cláudia Borges – Há redes que transferem todo o ensino noturno para a EJA porque isso resolve dois problemas. Primeiro, há muitos jovens ali, não é mesmo? E segundo, porque isso não afeta o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). Então, elas querem se livrar um pouco disso, infelizmente. No entanto, o que temos percebido é que, ao pensar na política da Educação de Jovens e Adultos, precisamos considerar cada público. No caso da juventude, temos um grande número de jovens concluindo o ensino fundamental e um grande número de jovens no ensino médio. Acredito que, com essa perspectiva, inclusive com a reforma do novo ensino médio, vai acabar chegando ainda mais jovens. Precisamos pensar em uma política para esse público, como eu mencionei, e tentar fazer um recorte também dentro do público jovem.
Porvir – Que tipo de política deveria ser pensada para esse público?
Cláudia Borges – Para esse público, compreendemos que a oferta precisa ser de EJA integrada à educação profissional. Estamos fazendo uma discussão e desenhando uma política junto com a Setec (Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica), aqui no Ministério da Educação, junto com a Diretoria do Campo, Indígena e Quilombola e junto com o Ministério do Trabalho. Semana passada, eles nos apresentaram uma proposta de formação profissional com aumento de escolaridade. Temos algumas perspectivas para pensar nesse jovem, que costuma ser quem ajuda em casa para sobrevivência. Temos que fazer uma oferta condizente com a sua condição de trabalhador, com espaços e tempos diferenciados para todo esse público.
Porvir – O legado de Paulo Freire, patrono da educação brasileira, foi muito atacado na gestão passada. Como preservar a sua memória e seus ensinamentos?
Cláudia Borges – Para além dos escritos dele, que estão presentes na nossa proposta, acredito que há o nosso compromisso. Paulo Freire falava muito do compromisso com um público que, historicamente, foi deixado de lado neste país. A EJA é uma construção da desigualdade social no Brasil. Então, ter compromisso com o direito desse público, que vai desde a alfabetização até a possibilidade de ele entrar na educação superior, é trazer Paulo Freire para a nossa luta. Não podemos nos esquecer de onde viemos e com quem aprendemos.