Olhar diferente para a matemática começa na formação inicial
Educadores precisam estar abertos a rever a própria forma como enxergam a matemática para tentar um ensino diferente
por Ruam Oliveira 13 de setembro de 2021
A depender de como você tem o primeiro contato com determinado conteúdo, é possível amá-lo ou odiá-lo. É assim com quem gosta muito das aulas de literatura, das de ciências ou de matemática. Parte desta dinâmica está na maneira como são apresentados os componentes curriculares aos estudantes.
Olhando para a matemática, não raramente é possível ver o quanto as pessoas acabam se dividindo entre os que se acham parte “escolhida” para entender o assunto, e parte que sente não se encaixar. Neste último grupo estão, inclusive, professores e professoras que passaram parte de suas vidas escolares introjetando esse tipo de pensamento.
Neste contexto, inserir e pensar em novas formas de ensinar e aprender matemática são práticas cada vez mais necessárias já no período de graduação. O professor Thiago Porto, do Instituto de Matemática e Tecnologia da UFCAT (Universidade Federal de Catalão), em Catalão (GO), participou de estágios supervisionados atuando na formação de professores, e percebeu que muitos educadores tinham dificuldades e dúvidas sobre como apresentar o conteúdo de maneira criativa.
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“Os alunos, quando estão na formação inicial, criticam muito o ensino tradicional, mas na hora de atuar e pensar por si mesmos, acabam vestindo a mesma camisa” diz Thiago. É como se, uma vez em sala de aula, não conseguissem se desvencilhar das velhas amarras.
“Eu até consigo entender um pouco desse comportamento, porque é muito mais fácil você replicar aquilo que você já vivenciou do que ‘pensar fora da caixa’. Fazer algo diferente é muito mais difícil”, ressalta.
O espaço da formação inicial pode ser campo fértil para colocar em prática formas “fora da caixa” no ensino da matemática. As mentalidades matemáticas propostas pela professora Jo Boaler, da Faculdade de Educação da Universidade Stanford (EUA), apresentam a matemática com foco em padrões, evidenciando e incentivando a criatividade e um pensar menos rígido, focando no processo de aprendizagem mais do que no resultado em si.
Para alcançar esse nível de envolvimento com a matemática, Thiago destaca que há de existir uma mudança completa de como o professor até mesmo interage com a turma. “É um conjunto de ações, desde a forma como você o acolhe quando ele chega, como encara os erros dentro da sala, até o momento do desfecho da aula”, afirma.
Nos cursos de licenciatura em matemática e na formação inicial de professores de matemática em que atua, Thiago recentemente deu início a um novo projeto para implementar uma disciplina eletiva que vai tratar exclusivamente das mentalidades matemáticas e como aplicá-las em sala de aula. No entanto, ele acredita que qualquer oportunidade pode ser usada para pensar a matemática de um jeito diferente, aplicando os conhecimentos de maneira transversal.
Interesse e aproximação
Quem trabalha dessa mesma forma é Liliana Costa, professora do departamento de Matemática do Colégio Pedro II (CPII), no Rio de Janeiro (RJ). Ela atua tanto na educação básica como na pós-graduação, dando aulas no Curso de Especialização em Educação Matemática do CPII e no mestrado profissional em rede nacional (Profmat).
Natural de Portugal, Liliana afirma que inicialmente sentiu um estranhamento com as divisões tão marcadas que eram feitas aqui no Brasil em relação aos componentes curriculares.
“Com a especialização, as pessoas tendem a especializar-se em guetos. As pessoas são muito boas neste ou naquele assunto. Por exemplo, na medicina você vai ao médico que é ortopedista e só sabe de dedo. Ele não sabe de mão, nem sabe de pé, então a pessoa fica completamente perdida”, afirma.
O que Liliana traz, em outras palavras, é a necessidade de que os futuros professores observem a matemática da maneira mais aberta possível. Parte do processo de desenvolver novas formas de ensinar – e também de garantir que os alunos estarão interessados em aprender – passa por um caminho de descoberta sobre maneiras como a matemática aparece. O que significa não colocar o componente em um compartimento, mas expandi-lo para diferentes contextos, fazendo com que o estudante perceba matemática em locais pouco prováveis.
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Ela conta que costuma fazer um jogo mental quando vai às compras: se desafia a calcular o valor aproximado de tudo o que põe no carrinho e depois compara com o valor que aparece no caixa do supermercado. Disse que já conseguiu inclusive evitar que pagasse dinheiro a mais devido a um erro de digitação da registradora.
Contrária às listas de exercícios, Liliana, assim como Thiago, afirma que a mudança de mentalidade que os professores precisam ter deve transpassar caixinhas e ser vivenciada de maneira transversal. Não quer dizer que não se deva respeitar o currículo, mas sim pensar a apresentação do conteúdo de uma outra forma, menos tradicional.
Na formação de professores, destaca que ir contra a ensinar a matemática como um simples sistema de regras fechado é também se opor a um sistema de certa forma hegemônico e praticado na maioria dos lugares. “No fundo, elas [as pessoas] não aprendem matemática, aprendem um conjunto de regras que vão ser esquecidas em pouco tempo. Porque é o que acontece, não é? E em termos do seu crescimento e enriquecimento intelectual, acaba por zerar, não tem grande avanço”, diz Liliana.
É um desafio da própria formação de professores repensar a maneira de ensinar. Liliana afirma que é necessária uma atitude madura para compreender que, às vezes, a maneira como se ensina é errada. Ela avalia a própria trajetória e aponta que no início de carreira era uma professora muito rígida, e que foi obrigada a se entender desta forma e repensar a prática a partir disso.
Um dos impasses quando se observa a graduação está na maneira como os educadores saem no curso e ingressam na sala de aula, sem ter passado por um acompanhamento durante esse processo e que os possibilite uma prática melhor principalmente no período inicial de atuação.
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Claudia Siqueira, diretora do Colégio Sidarta, em São Paulo (SP), aponta que dizer que há disparidade entre a universidade e a sala de aula seria apenas “reafirmar” essa realidade, ou seja, não seria uma novidade.
“A gente vai reafirmar que não existe um diálogo entre o que qualquer universidade faz com o estudante na graduação, com que ele vive no dia a dia de uma escola. Isto é ruim porque quando ele vai para a escola, deixa de ter uma mentoria, porque agora está dando aula. Ele não é um provocador de aprendizagem, mas alguém que dá aula. Ele pode ser bom nisso, mas não aprendeu a criar relação entre áreas do conhecimento”, destaca.
A diretora ainda afirma que muitos dos que optam pela pedagogia, o fazem justamente como tentativa de “fugir” da matemática. Essa é uma evidência de que a má experiência com o componente curricular deixa algumas marcas que o educador ou educadora acaba reproduzindo em aula.
Caminhos para a mudança
Mudar a mentalidade pode ser algo a ser construído em grupo, não somente por um ou outro educador solitário que deseja rever suas práticas e repensar a forma como apresenta a matemática. No caso das Mentalidades Matemáticas, existe a Rede MM, que conecta professores e professoras de diferentes estados brasileiros para estudar e refletir conjuntamente como atuar nos mais diversos níveis da educação com essa nova abordagem.
Por ser algo novo e ainda pouco explorado nas faculdades, a abordagem dentro da graduação ainda é incipiente e bastante desafiadora. O professor Henrique Marins, de Licenciatura em Matemática e Mestrado Profissional de Matemática em rede nacional (Profmat) no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo – campus São Paulo (SP), teve o primeiro contato com as mentalidades por meio de uma candidata à orientação, que gostaria de trabalhar com o tema.
Após esse primeiro contato, assim como o professor Thiago e a professora Liliana, Henrique destaca que tenta apresentar princípios das Mentalidades Matemáticas em todas as disciplinas que trabalha na graduação.
“Em disciplinas que eu ministrei, como cálculo, lógica ou práticas de ensino, fui inserindo, colocando algumas características de mentalidades. Não consigo mais fazer diferente nisso por acreditar que isso é o jeito mais adequado”, conta Henrique.
A maneira como se aborda a questão, para ele, tem um grande peso na decisão individual do professor ou da professora. Após compreender que existem outras maneiras de apresentar a matemática e, com isso, influenciar positivamente seus estudantes, o educador tem a possibilidade de rever práticas. Mesmo que possam surgir dificuldades em níveis estruturais ou institucionais, naquilo que é de decisão própria do educador, é possível se aventurar em uma abordagem fora da caixa.
Alguns aspectos podem aparecer, por exemplo, nas práticas de sala de aula. Ao invés de valorizar, por exemplo, o trabalho individual, o educador ou educadora pode dar ênfase para o trabalho em grupo, que é um princípio das mentalidades matemáticas e pode ser feito independentemente do que está escrito como objetivo, ementa e bibliografia.
“Transformar as tarefas em tarefas mais abertas, mais investigativas, que exijam mais da criatividade e bem menos ênfase à questão da repetição, do tempo, da velocidade para resolver isso também é uma decisão do professor. Não há nada no ementário que obrigue o professor a dar uma lista de trinta exercícios, todos iguais, mudando somente os valores. Isso não está em lugar nenhum”, explica Henrique.“Isso muitas vezes é uma prática que vem historicamente. O professor, às vezes, por não ter tido a oportunidade de refletir sobre aquilo, acaba simplesmente perpetuando essa prática”, complementa.
Aprender e ensinar, apesar de interligadas, são ações distintas e que nem sempre acontecem simultaneamente, ressalta Henrique. Pensando na matemática e nas múltiplas possibilidades de ser representada e apresentada, o professor destaca que é muito importante que os educadores não privilegiem uma única representação, pois “ao valorizar uma única porta de entrada para a matemática, você exclui todos aqueles que enxergam a matemática, pelo menos num primeiro momento, sobre outros pontos de vista”.
É bastante comum que exista uma não valorização de representações visuais e geométricas, por exemplo, e uma supervalorização das representações numéricas, afirma Henrique. Apesar de ser boa e eficaz para resolver o problema de traduzir em símbolos alguns conceitos, essa não deve ser a única opção.
“O professor de matemática não pode de forma nenhuma dispensar as múltiplas representações da matemática, porque naquele momento o aluno está num processo de construção do seu próprio significado daquele objeto. Precisa ter a oportunidade de ingressar nesse conceito com múltiplos pontos de vista, até para que ele próprio depois tenha condições de dizer que compreende justamente por que é capaz de fazer essas transações”, analisa “Se eu sou capaz de representar o mesmo objeto de muitas maneiras, é porque realmente entendi o que ele significa”, conta o educador.
A matemática – assim como outros componentes curriculares –, quando mal apresentada, pode significar uma frustração e ao primeiro impasse ou pedra no caminho já é suficiente para que o estudante abandone e diga que matemática é para poucos.
Aquele estudante – e professor – que vem com um conhecimento de que sempre é possível ter outras representações, ter outras vias de acesso ao conhecimento, quando se depara com uma dificuldade, não vai desistir, mas vai manter o esforço, talvez tentando por outras vias.
“É uma questão de mudança de postura do aluno também. Mas isso só vai ser construído por uma mudança de postura do professor, por uma mudança nos discursos. As palavras que dizem respeito à matemática precisam ser modificadas. Essa questão de que a matemática é difícil, não é isso. O que a gente precisa é justamente trazer matemática dentro do contexto de outros conhecimentos e perceber o quanto eles estão ligados” aponta Henrique.