O potencial das histórias em quadrinhos como ferramentas de ensino
Na volta às aulas presenciais, utilizar gibis para estimular a leitura, a contação e a criação das próprias histórias pode dinamizar o plano de aula. Confira algumas sugestões
por Ana Luísa D'Maschio 28 de janeiro de 2022
Como engajar os alunos depois de tanto tempo de aulas remotas? Uma das respostas encontradas pelos professores da Escola Municipal Santa Corona, em Caxias do Sul (RS), no segundo semestre de 2021, foi o trabalho com histórias em quadrinhos. Reconhecidos pela BNCC (Base Nacional Comum Curricular) por seu caráter singular, os quadrinhos estão previstos nos componentes curriculares por relacionar características de humor, imagens, palavras e recursos gráficos. O documento, definidor das aprendizagens essenciais que todos devem receber na educação básica, ainda menciona as HQs como exemplos no uso das práticas de linguagem que envolvem leitura, escrita e análise linguística e semiótica.
Nas aulas de língua portuguesa do 6º ano, a professora Sumara Deggerone utilizou quadrinhos para trabalhar compreensão de texto a partir da recriação de tirinhas com histórias próprias dos alunos. “Adoro trabalhar com gibis, e os alunos também sempre recebem muito bem esse formato, gostam bastante da interação. É uma maneira lúdica de ensinar linguagem verbal e não verbal”, conta.
Pedagoga há 25 anos, Tânia Gisele de Freitas sempre leva quadrinhos para seus planos de aula e, em 2021, os apresentou para a turma do 4º ano. “É uma leitura prazerosa para todas as idades. Os alunos em fase inicial de alfabetização se interessam bastante por histórias em quadrinhos. Espontaneamente, passam a criar suas próprias histórias”, diz.
Professor de matemática, Michel Molossi é fã de gibis desde menino. “Os quadrinhos me ajudaram muito no processo de alfabetização”, ressalta. Devido à pandemia, em 2021, Michel foi convidado a participar da recuperação de aprendizagem, com aulas de reforço de português e matemática. Para a turma do 5º ano, não teve dúvidas em mostrar os gibis e, por meio deles, avaliar interpretação de texto. “Como os alunos vinham de uma parada muito grande em casa, sentiram algumas dificuldades para responder a certas questões”, relembra. “Achei surpreendente quando alguns deles me disseram que foi o primeiro contato com um gibi. Outros disseram que não tinham o hábito de ler quadrinhos. Creio que a culpa está no uso demasiado dos smartphones. A experiência durante a aula foi interessante”, avalia o professor.
Caminhos em comum
Sumara, Tânia e Michel experimentaram o Projeto Quadrinhos na Escola, da Editora Culturama, que inaugura o selo Culturama Educação com a proposta. Trata-se de uma maleta com 35 gibis da Disney, a serem distribuídos aos estudantes, e um livro do professor com atividades e sequências didáticas relacionadas às histórias dos gibis, baseadas na BNCC. Um aplicativo com outras histórias e conteúdos em PDF para impressão também acompanha o projeto. “É um material de orientação, com dicas e informações, mas que deixa espaço para os educadores criarem suas práticas”, afirma Luciana Falkenbach, assessora pedagógica, tradutora da Culturama e coordenadora do material.
Segundo Luciana, levar publicações em quadrinhos para a sala de aula é uma das formas mais acessíveis de incentivar a habilidade leitora. “Ao contrário do que afirma o senso comum, as HQs não apresentam um texto fácil, aquele que tende a reduzir a capacidade do indivíduo de extrapolar por meio de sua imaginação. Mesmo com as imagens e os textos escritos em balões, a criança olha para o gibi e vai além, faz uso da sua criatividade para completar sua própria história”, reforça ela, que também é coordenadora da EMEF Santa Corona.
Na atuação de 15 anos como professora de língua portuguesa, Luciana sempre viu bons resultados ao trabalhar com gibis. Ela destaca as atividades com onomatopeias (figura de linguagem que indica a reprodução de sons), que sempre despertam curiosidade nas crianças. E a possibilidade de utilizar as tirinhas com qualquer outra disciplina sempre foi um ponto positivo para os professores. “Você pode tratar de matemática com uma história do Tio Patinhas ou geografia quando os personagens viajam pelo mundo”, exemplifica.
“Eu aprendi a ler porque queria ler quadrinhos”, conta Luciana. “Pedia para minha mãe contar as histórias antes de aprender a ler. Ficava inventando os meus roteiros baseados nas figuras e nas cores.” Para Luciana, os desenhos alcançam as crianças de maneira efetiva, por ser um processo de interação ligado à predisposição psicológica da primeira infância. “A criança que brinca de ler, depois, tem mais facilidade de entender o código da língua escrita. As histórias em quadrinhos têm esse potencial”, ressalta.
Abaixo, Luciana e Naihobi Rodrigues, gerente editorial da Culturama, listaram algumas sugestões para levar as HQs à sala de aula.
5 dicas para ler e criar histórias em quadrinhos com os alunos
1. Faça um levantamento do conhecimento prévio dos estudantes sobre HQs. O que eles já leem? Quais histórias conhecem? De quais personagens gostam mais? Você certamente descobrirá que muitos já têm como hábito a leitura de gibis.
2. A partir desse levantamento, organize uma seleção adequada de HQs e apresente às crianças e adolescentes outros títulos e formatos. Quanto mais familiarizados com o gênero, mais facilidade terão para produzir suas próprias histórias.
3. Explore as HQs para além das aulas de língua portuguesa. Nos demais componentes curriculares, elas podem ser usadas para introduzir um tema, gerar uma discussão ou ilustrar um conceito de forma bastante lúdica.
4. Planeje atividades que envolvam a “alfabetização” dos alunos na linguagem dos quadrinhos para que possam se apropriar de conhecimentos, em especial, sobre técnicas de desenho, tipos de planos e ângulos de visão dos quadros, formatos de balões, uso de onomatopeias e interjeições.
5. Utilize ferramentas online e gratuitas para criar cenários, personagens e expressões. Nesta matéria do Porvir, você encontra sete sugestões para montar as histórias, com a opção de imprimi-las depois.
Quadrinhos e educação
Desde os primórdios, o homem se comunica por meio da linguagem não-verbal. Das pinturas rupestres aos quadros de igrejas medievais, eram estampadas figuras que, de certo modo, inspiravam a criação das histórias em quadrinhos. A primeira da era moderna, dividida em quadros e com balões de texto, data de 1895: o personagem Yellow Kid, criado pelo norte-americano Richard Outcault, circulava uma vez por semana no jornal New York World, informa a revista Superinteressante.
No Brasil, o primeiro passo para a inserção oficial dos quadrinhos em sala de aula chegou em 1996, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e com os Parâmetros Curriculares Nacionais. A partir de 2006, as histórias em quadrinhos passaram a ser incluídas na lista do PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola), que distribui livros para escolas de todo o país.
Para saber mais sobre a relação entre tirinhas e educação, confira a entrevista com o coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos da USP (Universidade de São Paulo, Waldomiro Vergueiro.