A escola precisa ser potencializadora de existências, diz Bárbara Carine - PORVIR

Inovações em Educação

A escola precisa ser potencializadora de existências, diz Bárbara Carine

Professora e escritora, com um canal no Instagram prestes a alcançar 400 mil seguidores, Bárbara Carine analisa a importância de as escolas adotarem posturas antirracistas e os caminhos para a formação de professores

por Ana Luísa D'Maschio / Ruam Oliveira ilustração relógio 20 de novembro de 2023

Foi aos 27 anos, quando defendeu o doutorado de Ensino em Química pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), que Bárbara Carine Soares Pinheiro despertou para o letramento racial, processo de conscientização sobre o racismo. E não mais parou. “Em uma sociedade estruturalmente racista, a gente passa uma vida se letrando, se desvinculando dos maus provenientes do racismo enraizado na nossa consciência. Vou passar até o fim da minha vida me letrando racialmente, percebendo nuances do racismo que são cada vez mais sofisticadas”, garante. 

Mãe, nordestina e voz ativa na militância negra, com graduação em filosofia também pela UFBA, onde trabalha como professora, Bárbara Carine se define como uma intelectual diferentona.  Esse é, inclusive, o nome de sua conta no Instagram que está prestes a alcançar 400 mil seguidores e se tornou uma referência no debate antirracista, especialmente para professores e professoras.

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A ideia de uma escola distante do  eurocentrismo e capaz de acolher sua filha, fortalecendo a identidade de uma criança negra, fez com que Bárbara criasse a Maria Felipa, primeira escola afro-brasileira registrada pelo MEC (Ministério da Educação), com um currículo trilíngue (Português, Inglês e Libras). Autora de dez livros, entre eles “Como ser um educador antirracista” (Editora Planeta), Bárbara conversou com o Porvir sobre estratégias de enfrentamento ao racismo, respeito à ancestralidade e a importância da formação de toda a equipe escolar para as questões étnico-raciais. Confira:

Porvir – O respeito à ancestralidade e aos conhecimentos dos mais velhos marca sua trajetória. Como era a educação no Quilombo Mocambo dos Negros, local de nascimento de sua mãe, e no bairro Fazenda Grande do Retiro, na periferia de Salvador, onde passou sua infância? 

A professora e escritora Bárbara Carine
Crédito: Arquivo pessoal A professora e escritora Bárbara Carine

Bárbara Carine – Existe um provérbio africano que diz: “É preciso uma comunidade inteira para educar uma criança”, e isso vai para além da perspectiva da educação formal. É a educação no sentido formativo humano, da maneira mais ampla possível. Os espaços enegrecidos vivem essa perspectiva comunitária muito fortemente, seja no quilombo, seja na periferia. Visitei já na vida adulta o quilombo onde minha mãe nasceu – minha ancestralidade vem de lá. Pude notar similaridades com a periferia, ao ver a comunidade se preocupando e cuidando dos filhos uns dos outros quando as pessoas vão trabalhar, muitas vezes na casa dos outros, cuidando dos filhos de outras pessoas. No quilombo, o trabalho é muitas vezes na roça ou na fazenda de outras pessoas brancas. Por lá, há esse senso de cuidado para além das infâncias; é um cuidado coletivo mesmo, pessoas cuidando umas das outras. É algo muito presente na periferia também: você faz um bolo e leva para o vizinho, sempre está compartilhando o pouco que tem, mas não tem noção de ser tão pouco assim. É sempre algo a serviço do outro, a serviço da sua comunidade.

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Porvir – Em um dos TEDx dos quais participou, você comenta que as memórias mais dolorosas de uma pessoa preta costumam vir da escola. Como foi essa vivência para você?

Bárbara Carine – Falar das minhas vivências e de atravessamentos do racismo no espaço da escola é o tema do meu próximo livro. É algo muito amplo para responder em uma pergunta…. Foi tudo muito no sentido de me retirar a condição humana, de me fazer perceber que eu tenho um lugar social que é um lugar de ausência de potência, um lugar social no qual não vai existir projeção, que os acertos e as conquistas a mim não eram reservadas. Era uma destituição de absolutamente tudo, de poderio estético, cultural e religioso, de poderio da cultura musical que eu gostava, de memórias, de referências. É uma experiência de ausência, um não-lugar. Mas me ajudou no sentido do desenvolvimento dos instrumentos do pensamento, na questão do intelecto, a me formar humanamente. Guardo os resquícios, e essas memórias são pontos de terapia até hoje.

Porvir – Pensar uma escola longe do eurocentrismo a fez criar a Escola Afro-Brasileira Maria Felipa. Recentemente, publicamos aqui no Porvir um texto da Cristiane Coelho sobre a gestão decolonial da escola. O que falta para que as escolas adotem, de fato, uma postura antirracista?

Bárbara Carine – A escola é um complexo social. Ela está inserida em uma sociedade estruturalmente racista. O que falta para as escolas serem efetivamente antirracistas é elas serem compostas por pessoas antirracistas, que sejam sensibilizadas pela necessidade do enfrentamento desse grande mal social que é o racismo. Infelizmente a gente está longe disso. Temos, hoje, uma série de produções audiovisuais, literárias, de mídias sociais, temos avançado em tantos campos de comunicação e de acesso às massas tocando nas questões do enfrentamento ao eurocentrismo e ao racismo. Ainda assim, muitas pessoas seguem bastante convictas da necessidade de garantir os seus privilégios, custe os direitos de quem custar. Acredito que tem um tanto aí de educação e de formação para fazer com muita gente, mas tem um tanto de entendimento também de gente que não quer ser formada, não quer ser educada. Isso vai reverberar em todos os complexos sociais, inclusive na escola.

Porvir – Apenas em São Paulo, mais de 3 mil denúncias de discriminação em escolas estaduais foram registradas somente em 2023. Os casos aumentaram 500% nos últimos cinco anos. Como, em meio a tanta violência, reverter esse cenário?

Bárbara Carine – Sim, os casos de racismo são crescentes. A gente não sabe se esses dados alarmantes estão revelando que pessoas estão denunciando mais ou se pessoas estão cometendo mais racismo e se sentindo mais legitimadas, talvez por uma perspectiva de um governo que liberou as violências, as opressões de suas narrativas… A gente não sabe ao certo a que se deve esse fenômeno. Professores e professoras estão nesse fronte: As violências têm acontecido no interior das escolas e há a necessidade de que os professores e as professoras não atomizem a situação de racismo e busquem construir estratégias de enfrentamento coletivos ao racismo na escola por meio de projetos, reestruturações curriculares, cursos, formações, eventos para a comunidade escolar – incluindo também a família. É muito importante que seja uma atuação e uma ordem coletiva. Eu diria até para além de uma escola: pensar via sindicato, e que isso agregue um conjunto de escolas em diferentes esferas, públicas e privadas. É muito importante que seja uma atuação coletiva e que o Estado se responsabilize por esse processo, porque o cenário é muito crítico.

Porvir – No livro “Como se tornar um educador antirracista”, você escreve que o educador antirracista é um “sujeito que, em uma sociedade estruturalmente racista, compreende que não há como fugir psicologicamente desse mal se não destruirmos o racismo em suas bases”. Quais os caminhos para os professores lutarem contra o racismo?

Bárbara Carine – O caminho para os professores lutarem contra o racismo é se formarem a partir de referenciais teóricos antirracistas, pensarem em perspectivas curriculares a partir dessas premissas presentes em todos os componentes curriculares, pautarem as múltiplas existências no espaço escolar como existências potentes, legítimas e centrais. Não deve ser uma perspectiva brancocêntrica que a escola deve abraçar, mas sim uma perspectiva humana, para valorizar todas as pessoas humanas ali presentes. E valorizar a todos em suas múltiplas dimensões: ética, estética, ancestral, na dimensão das memórias e das perspectivas de futuro. A escola precisa ser uma grande potencializadora de existências. Precisamos de professores e professoras que abracem essa missão de potencializar vidas. Para isso, eles precisam estar potencializados nessa perspectiva, serem formados; as pessoas brancas precisam ser aliadas nesse processo, pessoas negras também precisam ser curadas – porque professores e professoras negras carregam consigo muitas dores provenientes do racismo, e muitas vezes se aprofundar nisso vai trazer gatilhos e reabrir feridas que não estavam totalmente saradas. Isso requer um processo, um esforço que também não pode ser singular do professor, tem de ser do Estado. Essa formação tem de ser abraçada por instituições públicas, instituições governamentais e universidades. As secretarias de educação precisam se responsabilizar por esse processo formativo.

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Porvir – Você também comenta no livro que seu processo de letramento racial iniciou-se aos 27 anos, quando terminava o doutorado. Como despertar o letramento racial cada vez mais cedo em educadores e educadoras?

Bárbara Carine – Na realidade, eu diria que foi o despertar para esse processo, porque em uma sociedade estruturalmente racista, a gente passa uma vida se letrando, se desvinculando dos maus provenientes do racismo enraizado na nossa consciência. É um processo longo para conseguir romper com esses grilhões. Eu começo ali aos 27 anos e diria que vou passar até o fim da minha vida me letrando racialmente, percebendo nuances do racismo que são cada vez mais sofisticadas e que são altamente móveis. O racismo se movimenta, se sofistica a cada ano que passa, requer um processo contínuo. Os professores e professoras vão passar por esse processo de letramento também, a partir de literatura, a partir de cursos, formações, de trocas com os pares, com os colegas, com professores e professoras que estão mais à frente nessa caminhada, acompanhando influenciadores antirracistas nas redes sociais. E a partir daí pressionar os movimentos sindicais docentes para que abracem essa pauta e os apoiem nesse processo.

Porvir – Entendemos a importância de chamar as coisas pelo nome correto. Frequentemente, casos de racismo são erroneamente categorizados como bullying. Por que é importante fazer essa distinção? 

Bárbara Carine – É muito importante distinguir o racismo do bullying. Quando você coloca todas as opressões dentro do grande conjunto que é o bullying, você invisibiliza a pauta da opressão. Às vezes, o bullying é um bullying capacitista e a gente diz apenas que é um bullying e não entende que existe o problema do capacitismo, que existe o problema da ausência de valorização e de humanização de pessoas com deficiência. O mesmo acontece com o bullying de natureza racista: a gente está falando, sim, de racismo. A gente está falando, sim, de perspectivas de hierarquias raciais na qual pessoas brancas se sentem legitimadas para rebaixarem pessoas negras e pessoas indígenas a partir de seu entendimento de superioridade. É muito importante nomear as opressões para a gente não silenciá-las, para não deslegitimar um processo de luta histórica e secular no caso do racismo e dos movimentos sociais negros.

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Porvir – Uma estratégia de enfrentamento ao racismo é não  individualizar atos racistas. Quais ferramentas podem ser utilizadas pelas escolas nesse contexto?

Bárbara Carine – No enfrentamento ao racismo, é fundamental que escola não singularize esse racismo. É óbvio: racismo é crime e pessoas que cometem crimes são punidas. É ação e reação, ato e reflexo. Entretanto, o racismo é um mal social estrutural, e todas as estruturas sociais se organizam no sentido da manutenção desse sistema. A escola tem sua responsabilidade, ela não é apenas do estudante que chamou outro de macaco: a responsabilidade é da escola que tem apenas pessoas brancas nos seus espaços de poder, a responsabilidade é da escola que não repensa seu currículo, a responsabilidade é da escola que não pensa a condição desse estudante negro dentro desse espaço escolar. A responsabilidade é da escola que reproduz o eurocentrismo, que reproduz a história a partir de uma narrativa única. A escola precisa repensar sua estrutura no sentido institucional sobre quais os fortalecimentos dessa hierarquização racial que ela reforça.

Porvir – Quanto à formação de uma equipe para práticas antirracistas, por que é essencial incluir pessoas de diferentes funções na escola, e não apenas quem atua dentro da sala de aula?

Bárbara Carine – Na formação dos profissionais da educação, todo mundo que atua no interior de uma escola é um educador, uma educadora. Não é apenas o professor ou a professora regente de turma, ou professor ou a professora assistente ou auxiliar. É muito importante que todas as pessoas da escola recebam esses processos formativos antirracistas. De nada adianta um professor ou uma professora fazer um trabalho antirracista incrível na sala de aula se a criança sofre racismo quando passa pelo porteiro ou pela porteira, se a criança sofre racismo quando passa pela secretária ou pela auxiliar de limpeza ou pela profissional da administração escolar. É fundamental que esse trabalho seja coletivo, com uma perspectiva comunitária dessa emancipação.


TAGS

competências para o século 21, consciência negra, educação antirracista, educação infantil, ensino fundamental, ensino médio, formação continuada, gestão escolar

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