Projeto fotográfico convida estudantes de pedagogia à autorreflexão - PORVIR
Crédito: Aaron / Canva Pro

Inovações em Educação

Projeto fotográfico convida estudantes de pedagogia à autorreflexão

Desenvolvida desde 2012, iniciativa do professor Paulo Carrano usa a linguagem fotográfica como ferramenta para a construção de identidade dos futuros pedagogos

por Ruam Oliveira ilustração relógio 2 de junho de 2022

Muitas coisas podem acontecer no período de 24 horas. Praticar exercícios, alimentar-se, ler, ir à escola, trabalhar… E se você registrasse momentos do seu dia como uma maneira de exercitar a memória e entender cada vez mais o contexto em que vive? 

Essa é a premissa do projeto “Meu Cotidiano em Fotos“, desenvolvido pelo professor Paulo Carrano, com alunos do curso de pedagogia da UFF (Universidade Federal Fluminense). Desde 2012, ele desenvolve este trabalho lançando uma pergunta aos estudantes: Em 10 fotografias, quantas histórias do cotidiano você é capaz de contar? 

A ideia inicial, que agora completa 10 anos, era que esta atividade servisse como um trabalho final. Mas a experiência tem sido tão bem sucedida que agora Paulo leva o assunto como pesquisa para seu projeto de produtividade em pesquisa para o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) sob o nome “Eu sou muitos – compreendendo processos de individuação de estudantes do curso de pedagogia”. 

A inspiração do título vem do poeta português Fernando Pessoa, conhecido pela profusão de heterônimos – as muitas versões dele mesmo. “Já naquele momento do final do século 19 e começo do século 20, o poeta expressava um vetor das nossa sociedade moderna que é a multiplicidade de papéis e a nossa capacidade de assumir diferentes identidades. O grande desafio é que a gente não se perca nesses papéis e mantenha uma certa unidade da nossa pessoa”, comenta Paulo, com um involuntário trocadilho entre pessoa e Pessoa, sua inspiração. 

As juventudes atualmente possuem um campo ampliado de possibilidades, explica Paulo, e se debruçar sobre essa questão tem sido seu mote nos estudos. Do ponto de vista de fazer escolhas, os jovens possuem uma abertura maior se comparado com as gerações de seus pais ou avós. No entanto, Paulo ressalta: não significa que seja fácil escolher os caminhos e que tal liberdade também está sujeita a uma gradação. O educador enxerga essa liberdade como um salto, no qual algumas pessoas podem seguir de maneira mais firme, outras nem tanto. 

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“Em uma sociedade desigual como a nossa, essa base para saltar para o futuro e fazer escolhas faz muita diferença. Os jovens mais pobres, que estão na escala da sociedade com mais dificuldades econômicas e suas famílias com uma dificuldade de prover recursos, têm mais dificuldade de fazer escolhas alternativas”, pondera.

Esse conceito de individuação, que aparece no título da pesquisa de Paulo, trata de um processo que torna as pessoas mais autônomas. Quando na universidade, os estudantes acabam lidando com um movimento de emancipação, de saída da casa dos pais, e ingressam nesse exercício de autonomia e liberdade. 

De fato, um jovem não é apenas um estudante, é também filho, irmão, amigo, funcionário, namorado, pai etc. Essa multiplicidade de papéis pode ser demonstrada nestes registros singulares de ações do dia a dia. 

As fotografias podem ser tiradas em qualquer lugar ou qualquer situação. A única exigência é que, junto às imagens, os estudantes também façam um breve relato sobre aquele momento vivido. 

Conhecer os estudantes

Entre  2012 até 2015, mais 3 mil fotografias e 700 textos foram produzidos pelas turmas com as quais o pesquisador trabalhou. Nessa toada, Paulo também queria conhecer um pouco mais sobre seus alunos. O professor destaca que há na relação entre professor-aluno uma importante necessidade de se saber com quem está dividindo a sala. 

“O professor fazer um movimento para conhecer melhor seus estudantes é muito bom, porque ele consegue dialogar com sujeitos reais, concretos, não apenas um conteúdo abstrato”, diz Paulo. “Mas, se nessa busca por conhecer os estudantes, nós conseguimos proporcionar dispositivos e ferramentas para que eles e elas possam se auto conhecer também, melhor ainda”, completa.

O professor guarda com carinho a lembrança de uma frase dita por uma de suas alunas: “Eu não sabia que tinha tanto cotidiano”. Incentivá-los a parar, olhar e refletir sobre os momentos que vivem também coloca os estudantes em uma posição de alerta e de desenvolvimento de sensibilidades. 

Paulo explica que os estudantes não fotografam qualquer momento. Pelo contrário, há um movimento de escolha, um filtro que acabam fazendo para decidir o que querem mostrar ou não. E é por meio destas ações que vão treinando o olhar, decidindo o que contam e por que registrar essa ou aquela cena. 

“Começa a surgir uma vida que muitas vezes nós, professores, não vemos. Porque por detrás daquele estudante existe um ser social completo, que é pai, que é mãe, que trabalha (…)”, diz o pesquisador. 

Conhece te a ti mesmo

Paralelo à atividade em sala de aula, o professor também criou um perfil no Instagram chamado “Retrato de Estudante”. Ele próprio um amante da fotografia, com este outro projeto convida estudantes voluntários a se entrevistarem mutuamente e escreverem uma mini biografia com base na trajetória escolar e que caiba em até 280 caracteres, como um tweet. Esse texto que vira a legenda é complementado por uma foto da pessoa, feita em estúdio por Paulo. “​​Eu peço que fechem os olhos durante cinco segundos e pensem na história escolar que contaram para o colega. Quando abrirem os olhos, eu sei que aquela cara vai expressar a história contada. Tem uma subjetividade enorme aí e cada retrato sai diferente, não só porque são pessoas diferentes, mas porque cada história é diferente”, comenta. 

O pesquisador aponta que esta é também uma forma de trabalhar o biográfico e o subjetivo de maneira simultânea. 

A escolha de trabalhar com fotografias se deu porque, do ponto de vista do pesquisador, é uma linguagem mais acessível às pessoas. Nem todo mundo é bom em desenho ou escrita, mas ter um celular ou câmera e capturar alguns momentos é algo mais próximo para a maior parte das pessoas. 

Atualmente, o projeto conta com quase 5 mil fotografias que serão catalogadas e incluídas no relatório final de pesquisa. A proposta é que parte desse material seja divulgado e os textos também compartilhados em alguma plataforma ou site de acesso aberto. 

O cotidiano, a casa e o olhar sobre um tempo

Foi no período da pandemia que as relações entre perceber a casa como um lar e com as possibilidades de nuances se intensificaram. “De 2020 para cá, temos fotografias que também contam a história dessa ordem social alterada”, diz o pesquisador. 

“Se antes de 2020 nós tínhamos fotografias que retratavam o engarrafamento, o ônibus cheio, a dificuldade de chegar entre o trabalho e a universidade, na pandemia essa categoria de mobilidade urbana praticamente desapareceu porque as pessoas estavam em confinamento social. Mas emergem outras categorias como, por exemplo, emoções e afetos. Estudantes que, com a pandemia, começaram a conhecer melhor os seus pais, que nunca tinham sentado à mesa de café da manhã ou de almoço durante a semana para almoçar com os pais…”, completa. 

A ideia é que artigos e análises sejam escritas sobre este período usando como base os momentos capturados pelos alunos em seus cotidianos. Medos, angústias, redescoberta de si mesmos são alguns dos elementos que figuram nesse período. 

Em uma sociedade cada vez mais complexa, na qual os estudantes encontram mais sentido em aprender com aquilo que dialoga com sua experiência, o pesquisador ressalta o quanto é importante que  sejam ouvidos e vistos. Ou seja, que a atenção pedagógica caminhe junto com a intencionalidade.

“Você só consegue dar conta da atenção se você escutar o outro, se criar janelas para a escuta do outro. Trabalhos como esse exercício é uma escuta, seja uma biográfica como de contar sua história de estudante, ou uma mais sincrônica, como o caso do cotidiano em fotos. Perguntar ‘como é que está a sua vida agora?’ pode ser uma escuta projetiva que inclua um ‘E amanhã como é que vai ser?'”, reflete Paulo. 

Com o trabalho, o pesquisador também percebe que olhar para o presente é também um mecanismo para imaginar os futuros possíveis. Ele também reflete que conhecer a vida e rotina dos estudantes também teve um impacto em sua própria maneira de ver o mundo.

“Para mim, tem sido uma oportunidade de exercitar uma noção de algo que eu já tinha, a partir de ler autores como Paulo Freire, que é a ideia da educação como campo de liberdade e você não faz isso sem diálogo ou sem escuta. Tem sido a possibilidade de conhecer o sujeito para além dessa categoria muito institucional que é a categoria aluno. É uma categoria que, muitas vezes, encobre muitos outros mundos como o de ser mãe ou de ser filho”. 


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