Estudantes se engajam em soluções para problemas locais em Feira Nacional de Ciências
22ª edição da Febrace (Feira Brasileira de Ciências e Engenharia) reúne projetos de todo o país com foco em soluções simples, ecológicas e, se possível, baratas
por Ruam Oliveira 20 de março de 2024
“Sabe quando a mãe da gente fala para lavarmos as frutas antes de comer se não dá bichinho?”, perguntou Samella Ester Cordeiro, estudante do 3º ano do ensino médio e técnico em farmácia da Funec (Fundação de Ensino de Contagem) Campus Centec, ao repórter do Porvir.
Acompanhada da amiga Rebeca Lorelayne Barbosa, ela estava apresentando o projeto “Identificador de ovos de ascaris lumbricoides através da inteligência artificial” na Febrace, a Feira Brasileira de Ciências e Engenharia, que está na 22ª edição e reúne projetos de estudantes da educação básica de vários estados. A mostra acontece na USP (Universidade de São Paulo) até a próxima sexta-feira (22), com entrada gratuita.
📳 Inscreva-se no canal do Porvir no WhatsApp para receber nossas novidades
“O germe que causa a famosa lombriga se chama ascaris. Quando a gente come esses alimentos sem lavar ou entra em contato com a terra sem lavar as mãos [e leva à boca], a gente ingere óvulos desse parasita, que em menos de uma semana eclodem no nosso corpo, fazendo um ciclo interno e causando lesões hepáticas”, explica a estudante.
Com entusiasmo, ela e a colega mostram os percursos para a criação da ferramenta. Amparada em inteligência artificial, as duas programaram um código de identificação em tempo real para discernir se determinada célula possui ou não ascaris. Com a câmera do celular apontada para a imagem da célula, o computador indica na tela: “com ascaris” ou “sem ascaris“. Elas usaram a linguagem de programação em Python no desenvolvimento do recurso.
“A gente usa o aprendizado de máquinas e imitamos como o nosso cérebro funciona. Ele aprende com os erros e, para evitar as mesmas consequências, ele tenta não errar de novo”, comenta Rebeca.
Samella e Rebeca utilizaram a mesma lógica com a máquina. Usando uma imagem de uma célula com ascaris, toda vez que a máquina identificava a ausência do germe, elas alteravam a programação para que a máquina entendesse que a resposta deveria ser outra. Treinaram o algoritmo até que ele fosse capaz de responder instantaneamente, como apresentado na Febrace.
A ideia para o projeto surgiu durante uma aula de parasitologia, com o professor Rodrigo Lobo Leite, que se tornou orientador das estudantes nessa empreitada. “Nós tivemos uma aula prática de identificação de parasitas e, visualizando esses ovos, elas começaram a pensar como poderia ter um diagnóstico mais rápido e mais eficiente dessas parasitoses”, conta o docente.
Rodrigo afirma que trabalhar com projetos é mexer com a imaginação, criatividade e curiosidade dos alunos, o que o deixa bastante animado e honrado. “A gente vê o desenvolvimento deles e como eles crescem como pessoas”, ressalta.
Leia também
5 práticas inovadoras sobre ciência na sala de aula
4 motivos para ampliar a conversa sobre ciências e levar o STEAM para a sua escola
Projetos científicos aproximam química do cotidiano do aluno
Às vezes os estudantes trazem ideias muito amplas e é importante que o orientador trabalhe em parceria para direcionar melhor o que planejam fazer para a feira de ciências. Ao criarem juntos todo o processo, diz Rodrigo, há uma troca constante de informação. Assim, os estudantes que ingressam nessas atividades também conseguem desenvolver habilidades relacionadas à produção científica que serão úteis em outras etapas acadêmicas, da graduação ao doutorado.
Descobrindo como fazer ciência
Amanda Thomé, professora de química no colégio Alfa Cem, que fica no Rio de Janeiro (RJ), também acredita que o contato prévio com o fazer científico e a produção de um artigo a ser publicado (critérios seguidos pela Febrace) faz com que os alunos fiquem mais preparados para os desafios das outras etapas de ensino. “Quando eles forem fazer o TCC (Trabalho de Conclusão de Curso), terão muito menos dificuldades, porque seguimos a mesma estrutura. Eles precisam pesquisar, consultar bases de dados e se aprofundar”, ressalta.
Esse letramento científico é diferencial na trajetória educacional de quem participa da feira, garante a professora. Por lá, Amanda estava acompanhada de Ana Luiza Dias Sodré e Isabela Possidio Amorim, que foram apresentar o projeto “Nanoaventura – uma jornada insulínica: utilizando um jogo digital como instrumento de ensino sobre o tema nanomedicamentos”.
Usando o Scratch, as estudantes programaram um jogo para mostrar o trajeto de um novo medicamento para o tratamento de diabetes tipo 1. Elas receberam da escola a proposta de trabalhar com nanomedicamentos, que é o uso de nanotecnologia pela indústria farmacêutica. “Foi um susto, porque a gente não sabia nada e precisamos pesquisar muito”, conta Ana Luiza.
Mas a surpresa inicial não as impediu de prosseguir. Entre pesquisas e conversas com pesquisadores, elas criaram uma narrativa gamificada do trajeto do medicamento pelo corpo do paciente. Chamado de “Gabriel”, o personagem com diabetes tipo 1 ingeriu uma “Nanobox”– outro elemento criado pelas estudantes.
Envolta em uma cápsula convencional, a nanobox possui receptores de glicose que, quando ligados a moléculas de glicose, compreendem o nível de açúcar no sangue, abrindo a caixa. “Ela vai abrir liberando o nanomedicamento de sílica mesoporosa, que é um medicamento com função de carregamento, contendo a insulina”, explica a estudante do 3º ano do ensino médio.
As duas comentam que escolheram lidar com a diabetes tipo 1 porque os tratamentos existentes ainda utilizam apenas agulhas, e elas gostariam de tentar algo mais rápido e menos invasivo.
O jogo tem fases que conversam com diferentes públicos, desde quem não sabe nada sobre diabetes até os que entendem um pouco, e acompanha todo o trajeto da nanobox até a liberação do medicamento. Para avançar de fase, é preciso responder a diferentes perguntas sobre essa temática e o jogo traz algumas dicas. Clique aqui para jogar.
Amanda comenta que a participação em feiras desse tipo é positiva não apenas para os estudantes, como para os educadores. “Aqui temos muitos projetos variados, e isso ajuda a expandir os horizontes. É quase como uma formação continuada, porque estamos inseridos em outros contextos, com muitas ramificações sobre a ciência”, pontua.
A docente destaca que geralmente as pessoas associam essas feiras a projetos de tecnologia e das áreas biológicas, e ver espaços dedicados a ciências sociais e humanas é outra maneira de pensar novas propostas e incentivar os estudantes.
Nem tudo é tecnologia
Nesse sentido, projetos que envolvem as áreas de humanas também têm destaque. Ana Júlia Souza Leite e Edilaine Rodrigues Rocha, alunas do ensino médio técnico no IFMS (Instituto Federal do Mato Grosso do Sul) Campus Dourados, realizam um projeto de resgate da memória de escritoras locais.
Intitulado “Escritoras no/do MS“, a ação desenvolvida pelas estudantes quer dar visibilidade a mulheres – vivas ou não – que têm como ofício a escrita no estado. Além do site, elas também produzem conteúdo para o Instagram e entrevistas com escritoras locais no YouTube.
“Percebemos que as mulheres produzem obras, tanto científicas, quanto literárias,nas diversas áreas do conhecimento, porém elas não são encontradas online ou nas bibliotecas. Então, a partir disso, começamos a pesquisar. Catalogamos em uma plataforma digital e em pouco mais de um ano de projeto, conseguimos mais de 200 escritoras”, afirma Edilaine.
A ideia inicial das estudantes era conseguir ao menos uma escritora de cada município do Mato Grosso do Sul. Contudo, ao continuarem pesquisando, viram que o volume era muito maior. O limite geográfico, para as estudantes, acabou se diluindo porque passaram a incluir autoras que apesar de não terem nascido no estado, viviam lá.
O projeto possibilitou que elas tivessem contato com diferentes autoras locais, expandindo o debate para além da produção de um título em si.
“Ao falar de criar um livro enquanto mulher, não é só escrita ou a publicação que está em discussão, é a vida dela, que afeta seu trabalho enquanto escritora. Essa mulher provavelmente tem outro trabalho, a família para cuidar etc..”, salienta Edilaine. Esses pontos, para ambas as estudantes, enriquecem o processo de investigação.
Elas descobriram, por exemplo, que muitas das autoras encontradas eram professoras suas, de seus pais, mulheres que escreveram o hino da cidade etc. “Esse resgate é importante porque muitos desses livros não estão mais disponíveis para a venda, e se a gente não fizer essa catalogação, essas mulheres serão esquecidas. É isso que o projeto quer combater”, afirma Ana Júlia.
“Por ser um estado de estrutura patriarcal, a questão do feminino ainda não é discutida, tanto na escrita quanto no geral. É importante que as mulheres ocupem mais os espaços de poder, que elas escrevam e sejam reconhecidas”, acrescenta Edilaine.
Aprendendo com projetos
A aprendizagem baseada em projetos, para a professora Amanda, é uma maneira de incentivar ainda mais os estudantes a se engajarem em diferentes temas. “Infelizmente, se a gente parar para pensar no ensino como um todo, vemos hoje em dia que ele está baseado em provas, muitas vezes acabamos deixando de lado essas metodologias ativas que são fundamentais para o aprendizado”, diz. “Vejo o meu aluno se desenvolver muito mais quando ele está se dedicando a um projeto, quando ele precisa colocar de fato a mão na massa”, complementa.
Para a educadora, é natural os estudantes terem vontade de pesquisar mais, se aprofundar mais e aperfeiçoar detalhes. “É uma coisa que a gente não percebe tanto quando estão em uma posição passiva de sala de aula, apenas retendo conhecimento”, diz.
A maior parte das propostas exibidas na feira partem de um problema social ou de saúde para pensar em soluções simples, ecológicas e, se possível, baratas. Ao todo, a 22ª Febrace expõe 226 projetos selecionados entre 500 finalistas de todo o território nacional, que por sua vez foram destacados dos quase 3 mil inscritos.
Há uma comissão avaliadora que fará a seleção dos melhores trabalhos apresentados neste mês de março em São Paulo. Estes ganharão medalhas, troféus, bolsas e estágios. Nove deles serão selecionados para o Regeneron ISEF, a Feira internacional de Ciências e Engenharia, que acontece em Los Angeles (EUA), entre 11 e 17 de maio.
Conheça os projetos finalistas